A igreja brasileira, em suas múltiplas expressões, ocupa um espaço singular na vida do país. De maneira histórica, ela foi não apenas um espaço de culto, mas também uma instituição com forte influência cultural, social e política. As últimas décadas, no entanto, trouxeram mudanças significativas nos debates públicos, nas demandas da população e nas dinâmicas entre religião e Estado.

Nesse contexto, torna-se essencial compreender como a igreja brasileira tem lidado com os desafios sociais e as movimentações políticas que marcaram a história recente do Brasil. A atuação das instituições religiosas passou a ser observada não apenas sob a ótica da espiritualidade, mas também como parte integrante das transformações sociais, dos debates sobre justiça e das decisões que afetam a vida da população.

A redemocratização e o novo papel público da fé cristã

A partir da redemocratização, com o fim do regime militar na década de 1980, a igreja brasileira se viu diante de um cenário novo e desafiador. O retorno das liberdades civis e políticas deu espaço para uma reorganização social ampla, e a religião voltou a se manifestar publicamente, agora com liberdade de crítica, engajamento e ação direta nas demandas do povo.

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), ligadas à Igreja Católica, desempenharam um papel crucial nesse processo. Inspiradas pela Teologia da Libertação, essas comunidades promoveram uma prática religiosa voltada para os pobres, denunciando injustiças e buscando alternativas concretas dentro das comunidades mais vulneráveis. Era uma igreja com os pés no chão da realidade, buscando transformar a fé em instrumento de cidadania e solidariedade.

Por outro lado, o crescimento das igrejas evangélicas, sobretudo das neopentecostais, trouxe uma nova dinâmica. A mensagem cristã passou a ser veiculada também pela lógica do empreendedorismo da fé, muitas vezes com foco na transformação individual e no sucesso pessoal. Ainda assim, essas igrejas ampliaram sua presença em bairros periféricos e passaram a formar redes de apoio e acolhimento que também tiveram relevância social considerável.

A relação com a política institucional e o avanço das bancadas religiosas

Com o tempo, a participação da igreja brasileira na política institucional deixou de ser pontual para se tornar sistemática. O processo de eleição de parlamentares com base no discurso religioso ganhou força nos anos 1990 e se consolidou nas décadas seguintes. Surgiu, então, a chamada “bancada evangélica”, um dos grupos mais influentes do Congresso Nacional nas últimas legislaturas.

Essa presença no legislativo passou a pautar temas de moralidade, costumes e família sob a ótica religiosa, influenciando diretamente a criação de leis e políticas públicas. Muitos líderes religiosos passaram a ocupar cargos políticos, sendo eleitos com base em discursos que misturam fé, conservadorismo e oposição a pautas progressistas como a descriminalização do aborto, o casamento homoafetivo e os direitos das populações LGBTQIA+.

O engajamento social e as ações concretas nas comunidades

Para além das disputas políticas, a igreja brasileira continua exercendo um papel importante nas ações sociais voltadas à população vulnerável. São milhares de instituições mantidas ou apoiadas por igrejas que atuam em áreas como educação, saúde, moradia, assistência a dependentes químicos, abrigo a pessoas em situação de rua e acolhimento de refugiados.

A atuação da igreja, nesse sentido, muitas vezes supri lacunas deixadas pelo Estado. Projetos como a Pastoral da Criança, da Igreja Católica, e iniciativas de igrejas evangélicas voltadas ao resgate social de ex-detentos, usuários de drogas ou vítimas de violência doméstica são apenas alguns exemplos do impacto direto da fé cristã no cotidiano de milhares de brasileiros.

Ainda que com diferentes abordagens, muitas lideranças religiosas compreendem que a missão da igreja passa por um compromisso com a dignidade humana e com a justiça social. Isso se manifesta em ações práticas e em discursos que denunciam a desigualdade, o racismo, a violência e o desrespeito aos direitos humanos, ainda que haja divergência sobre quais estratégias adotar e quais bandeiras levantar.

A polarização política e a divisão no meio religioso

Nas últimas décadas, especialmente a partir de 2013 com as manifestações populares e, depois, com o impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016, a sociedade brasileira entrou em um ciclo intenso de polarização política. Nesse cenário, a igreja — em suas diversas expressões — também foi afetada, com uma crescente divisão entre lideranças religiosas progressistas e conservadoras.

Esse cenário ficou ainda mais evidente nas eleições presidenciais de 2018 e 2022, quando muitos pastores e bispos evangélicos se alinharam abertamente a candidaturas de direita, justificando o apoio em nome da “defesa da família” e da “liberdade religiosa”. Em contrapartida, setores progressistas da Igreja Católica e de algumas igrejas evangélicas reagiram denunciando a manipulação da fé em campanhas eleitorais.

A disputa interna dentro do próprio campo religioso revela um conflito profundo: enquanto uns veem a fé como ferramenta de mobilização política contra determinadas agendas, outros insistem em separar religião de política partidária, enfatizando o compromisso com os pobres e a justiça social como valores evangélicos fundamentais. Essa tensão segue viva e se reflete tanto nos púlpitos quanto nas redes sociais.

O diálogo inter-religioso e os novos desafios sociais do século XXI

Apesar das tensões internas e da crescente polarização, há iniciativas promissoras no campo religioso que buscam o diálogo e a cooperação em torno de causas comuns. O Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), por exemplo, promove debates sobre temas como meio ambiente, direitos indígenas, combate ao racismo e à intolerância religiosa, reunindo lideranças católicas, evangélicas, luteranas e ortodoxas.

As igrejas também foram chamadas a se posicionar em momentos de crise, como durante a pandemia da COVID-19. Enquanto algumas adotaram uma postura negacionista, insistindo na manutenção de cultos presenciais, outras lideranças se destacaram pelo incentivo à vacinação, ao cuidado com os mais pobres e à solidariedade comunitária, reforçando o papel da fé como fonte de compaixão e responsabilidade coletiva.

Além disso, surgem novos desafios: como responder às questões ambientais? Como lidar com o avanço da inteligência artificial, com o impacto das redes sociais e com a mudança de valores das novas gerações? A igreja brasileira está sendo chamada, mais uma vez, a pensar seu papel diante de uma sociedade em transformação, sem abrir mão de sua identidade, mas também sem deixar de escutar os clamores do povo.

Conclusão: fé em movimento, sociedade em construção

Nas últimas décadas, a igreja brasileira se reinventou, se dividiu, se posicionou e se omitiu — dependendo do contexto e da tradição religiosa envolvida. O que não se pode negar é que sua presença continua forte e decisiva na vida social e política do país. Onde o Estado falha, muitas vezes é a igreja que acolhe, alimenta e dá esperança. Onde a política se torna conflituosa, ela pode ser espaço de pacificação ou de aprofundamento das divisões.

Com isso, o futuro da igreja brasileira dependerá de sua capacidade de dialogar com a realidade, manter-se fiel aos princípios do evangelho e se abrir a um mundo plural. A fé cristã, em suas diferentes expressões, tem potencial para ser agente de transformação social, desde que não se deixe capturar por interesses ideológicos, econômicos ou eleitoreiros. Que a espiritualidade seja ponte, e não muro. Que a religião inspire, e não controle.

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